Um espírito gentil preso no olhar grotesco da vida

por Catarina Araújo
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«Wonder», o título em inglês deste livro de R. J. Palacio, significa maravilha, ou na sua forma verbal, admirar-se, surpreender-se, sentir curiosidade. «Wonder» é uma daquelas palavras que, tal como «saudade», contêm nelas muito mais do que aquilo que significam objetivamente. Talvez por isso a editora decidiu-se por «Milagre» como título para a edição portuguesa. O que ainda assim, não sei se exprimirá com verdadeira justiça o otimismo, a esperança, o maravilhamento que a história nos transmite.

Auggie tem dez anos e está prestes a entrar numa escola nova. Como todas as crianças tem medo do que vai encontrar – novos professores, novos colegas, novas disciplinas, novas regras. Ainda para mais porque sempre estudou em casa, com a mãe. Porém, o desafio que está prestes a enfrentar é muito mais complicado do que à partida seria já que ele nasceu com uma deformação grave no rosto e teve de ser sujeito a inúmeras cirurgias para lhe permitir respirar normalmente, falar e comer.

Consciente do seu aspeto e de como as outras pessoas o veem à superfície, Auggie partilha com o leitor os seus medos, as suas dificuldades, com um humor, uma candura e uma franqueza desarmantes. Não há aqui lugar a condescendências, nem cinismos. As coisas são como são e ele sabe disso. Considera-se um miúdo normal – gosta de comer gelados, andar de bicicleta, jogar à bola e com a Xbox, além de ser um grande fã de A Guerra das Estrelas, só que com uma cara que leva «outros miúdos normais a fugir do parque infantil, aos gritos». Ele tem uns pais e uma irmã que o adoram, que o protegem, enchem-no de amor e carinho, mas sabe também que a irmã, Via, não o vê como um miúdo normal, caso contrário não sentiria necessidade de o proteger tanto, como ele próprio nos conta. No entanto, não se sente paralisado por isso, não deixa de se divertir, e se ao princípio se mostra muito relutante em ir para a escola nova, depois fica determinado em frequentá-la. Contudo, e tal como se esperava, não é fácil. Os miúdos são espontâneos, reagem à flor da pele, e alguns comportam-se de maneira diferente quando não estão ao pé dos pais ou de figuras de autoridade. Isso é uma coisa que Auggie aprende rapidamente.

A surpresa aqui é o facto de termos não só o ponto de vista de Auggie, mas também o de outras personagens importantes, como de Via, a irmã, e dos novos colegas de escola, como Summer, Jack Will, e até do namorado da irmã, Justin, e a melhor amiga dela, Miranda, cada um com a sua perspetiva sobre Auggie e a sua vida, visível até na sua escrita. É encantador verificar como ele toca cada um deles de uma maneira muito específica. Mais uma vez com uma franqueza brutal, sem floreados onde eles não existem. Há sentimentos de repulsa, de inveja, de dor, de vingança, há traições, há arrependimentos. Graças ao amor dos pais e da irmã, porém, Auggie é um rapaz muito bem resolvido e que aos poucos vai conquistando as pessoas ao seu redor. É claro que nem todas conseguem ultrapassar a deformidade do seu rosto e encontrar por detrás dela o miúdo normal com que todos nos identificamos e por quem nos apaixonamos perdidamente. Vivemos no mundo real e o desta história é tão real quanto possível.

Uma história desafiante, que nos obriga a pensar como reagiríamos se estivéssemos na pele de Auggie ou de alguém que o conhece, que nos desarma e que no fim nos deixa absorvidos em sentimentos de compaixão, esperança e otimismo, face à crueza da vida. E de como pequenos gestos de gentileza podem ter um efeito tão grande em nós e nos outros.

Deixo apenas uma pequena crítica a algumas gralhas e falhas de tradução, bem como ao formato adotado que é demasiado grande para uma criança, e este livro deve ser dado a ler às crianças.

Para quem estiver interessado em conhecer um pouco mais do contexto desta história, pode ler uma entrevista muito interessante que a autora R. J. Palacio deu ao The Guardian.

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