A ilha de todas as mentiras

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por Catarina Araújo

Cadence Sinclair pertence a uma família privilegiada que se esforça por exibir classe e defender os altos valores tradicionais. São todos lindos, loiros e atléticos. «Ninguém é criminoso», «Ninguém é viciado», «Ninguém é um fracasso», são as frases repetidas pela narradora, Cady, e com que os Sinclair se descrevem orgulhosamente, ostentando ainda lemas como «Nunca aceites um não como resposta» ou «Faz aquilo de que tens medo», como se fossem slogans essenciais para se atingir o estatuto de nobreza americana.

Todos os verões, a família Sinclair instala-se em Beechwood, a ilha privada do patriarca, perto de Martha’s Vineyard. Nessa ilha existe a casa principal, uma casa para os empregados, várias docas, praias e campos de ténis, e casas para as três filhas, Carrie, Penny e Bess. Cady é filha de Penny, e como primeira neta, suposta herdeira da ilha e da fortuna.

As três irmãs lutam entre elas pela atenção e pela fortuna do pai Harris, que está cada vez mais demente, após a morte da esposa, Tipper. Atormentadas pelos seus fracassos pessoais, entregam-se à bebida e à autocomiseração. As crianças mais pequenas apercebem-se do que se passa, mas vivem a sua inocência, enquanto as mais velhas sentem vontade de se rebelar, de se libertar dos lemas opressivos da família Sinclair.

É pois em Beechwood que se concentra a história efabulada dos «Mentirosos», um grupo composto pelos primos adolescentes Cady, Johnny, Mirren e por Gat Patil. Este último é sobrinho do namorado da tia Carrie. É um rapaz indiano, descrito como alguém de fora (e nunca muito bem aceite pelo patriarca), mas por quem Cady está apaixonada.

Os primos observam as discussões familiares cada vez mais duras e carregadas de rancores antigos e temem que os Sinclair caminhem para a autodestruição, como nos contos de fadas, com que Cady intercala a sua história. Os «Mentirosos» congeminam então um plano para reunir toda a gente em torno de algo em comum, na esperança de uma redenção coletiva.

Entretanto Cady sofre um acidente que lhe provoca uma lesão no cérebro, deixando-a com enxaquecas crónicas e incapacitantes. Uma outra consequência do traumatismo é amnésia. Cady não se lembra de nada do que aconteceu nesse verão, quando tinha quinze anos.

Passados dois anos, Cady regressa para passar o verão em Beechwood e descobre que algo na ilha mudou. Porém, a mãe e as tias estão cada vez piores. Ninguém na família lhe explica o que aconteceu e parecem viver todos em estado de negação, movido pelo tal esforço dos Sinclair em manter as aparências. Algo que acaba por corroê-los por dentro, tanto os adultos, como as crianças. Aos poucos, Cady vai montando o puzzle de certos acontecimentos que marcaram esse verão.

Ao longo da leitura vamos dando conta que nada daquilo que parece é e mais ou menos a meio começamos a descortinar que algo trágico aconteceu. A autora consegue extrair da personagem principal as sensações e os sentimentos de confusão, de medo, de dor, que afloram à medida que ela se vai confrontando com uma realidade que não é de modo nenhum confiável. Não se compreende muito bem porque é que aquele grupo de adolescentes é chamado de «Mentirosos», não nos é dado um contexto, porém a nuvem que envolve a família é tão densa que dá para entender a política de omissão, de secretismo que reina entre os Sinclair.

O estilo de escrita de E. Lockhart, metafórico e recortado, não agradará a todos. Em certos momentos somos confrontados com uma cena inesperada, que só com releitura se conclui ser uma metáfora. Por vezes é difícil distinguir o metafórico do literal.  Este estilo é magistralmente conseguido por Jandy Nelson (The Sky Is Everywhere; I’ll Give You The Sun) e em parte também por Tahereh Mafi (Shatter Me). A execução nesta obra, todavia, é infeliz e perturba a fluidez da leitura, sem lhe conferir a poética desejada.

Em relação ao enredo, que daria «pano» para personagens memoráveis, acaba por ser dececionante nesse aspeto. A única personagem que é desenvolvida e que apresenta conteúdo, para além de Cady, é Gat, com quem ela vive um breve romance. Os primos Johnny e Mirren são-nos descritos com palavras soltas. As tias, ou estão a discutir a divisão das casas e dos bens, ou estão a beber, ou vagueiam fantasmagoricamente pela ilha. A mãe de Cady limita-se a dizer-lhe o quanto a ama e que ela tem de descobrir o que se passou por si. Manter estas personagens à distância poderá ser intencional, mas mais uma vez a execução não é feliz, porque não se chega a criar empatia pela família, nem pelo desfiar da sua história.

A história como um todo é efetivamente cativante e a autora sabe conduzir o leitor com perícia pelas memórias fragmentadas de uma narradora cuja perceção da realidade se encontra deturpada, devido à doença que a afeta, à sua idade, e ao facto de ser, afinal de contas, uma Sinclair. A sensação com que se fica no final é intensa e perdurará por algum tempo, mesmo depois de fechado o livro.

Título: Quando Éramos Mentirosos
Autor: E. Lockhart
Tradução: Elsa T. S. Vieira
Editor: Edições ASA

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